"Again and again we are reborn. It is not enough simply to be born of the mother's womb. Many births are necessary. Be reborn always and everywhere. Again and again."
Tatsumi Hijikata

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

'Desejo Ignorante' de Márcia Lança, no Teatro Maria Matos, 11 e 12 NOV


À luz do Desejo Ignorante

Joana Pupo, atriz e investigadora

“Lanscape must be regarded first in terms of living rather than looking.”
John B. Jackson in “Land/Scape/Theater”
FUCHS, Elinon & CHAUDURI, Una; The University of Michigan Press, 2002


A  peça da Márcia conta a história de uma revelação. O que a Márcia, o Aniol e o Tiago me propõem são na verdade várias revelações. Da luz e dos corpos, sobretudo. Se estivesse a falar em inglês, podia jogar com o duplo sentido da palavra “Light”. Seria, então, da “luz” - o que a luz do vídeo me revela - e da “leveza” - o que a leveza dos corpos me revela. Daí podia relacionar o “desejo” com a leveza dos corpos e o “ignorante” com esta ideia de luz e de revelação, pois, na verdade, este movimento de revelação transforma-se naturalmente em movimento de indagação.

No início, o silêncio, a escuridão e a leveza quase inerte dos corpos lançam-me numa espécie de lugar transitório. Pouco a pouco percebo que a essa quietude do som, da luz e do movimento subjaz um jogo de peso e de contacto. Aqui acrescento à palavra “Light”, luz-leveza, a palavra continuidade, poderia dizer “presente contínuo”. Quando dou por mim, aderi totalmente. Vivo o desenrolar daquele lugar de transição, através do movimento contínuo dos corpos e da revelação da luz, como um processo inexorável e já contido na quietude. É como aderir ao devir contínuo da natureza, é como aderir naturalmente ao nascer de um novo dia. O meu corpo, mesmo que inerte, ou apoiado numa cadeira, não fica indiferente às mudanças que ocorrem numa espécie de linha subtil de continuidade, onde o fazer e o não fazer se sobrepõem.

Neste processo, fico com espaço para mim, para o meu próprio respirar na cadeira do teatro. Foco esta ideia de “quietude”, do quão importante é a quietude e quão ilusória a imobilidade. No movimento próprio da quietude, a respiração, há ainda um movimento mínimo dos meus órgãos, dentro do corpo, uma adaptação da gravidade ao movimento da respiração. Reparo então que a Márcia e o Aniol, respiram juntos, promovem essa qualidade do respirar juntos, e de sentir juntos o movimento dos órgãos, da gravidade, a reagir à respiração. E de repente a minha sensação salta de um nascer do dia para uma hora da sesta de verão.

Agora sinto a peça como uma “clareira”: será possível um lugar onde simplesmente respiremos juntos, num mundo que me impele constantemente a andar à frente dos meus próprios passos?

Apercebo-me, por detrás da revelação da luz, de uma imagem. Mais uma vez, só ilusoriamente esta imagem é estática, pois contém o movimento do tempo. Será que me apontam para o lugar da revelação fotográfica, como se o processo artístico fosse sempre o processo de uma revelação? E, nesse caso, quando finalmente tenho acesso à coisa em si, ela está velha, aparece diante dos meus olhos como uma coisa do passado. Assim, a minha percepção descola os corpos, em movimento contínuo, e o movimento do vídeo, daquela imagem, objecto, ali aparecido.

Mais uma vez a quietude dos corpos e agora esse objecto, deteriorado pelo tempo. O que me leva a valorizar ainda mais o processo em si, como um presente contínuo de revelação, do que a obra, uma espécie de memória, coisa do passado. No entanto, eu (na cadeira do teatro), a Márcia, o Aniol e o Tiago respiramos com a obra em si, em deterioração, como os nossos próprios corpos.

Penso neste tipo de “clareira”: o lugar da arte, do processo artístico, ou mesmo o teatro, como o lugar de uma utopia possível de respirarmos juntos, de nos apercebermos da nossa continuidade, enquanto sujeitos, e da nossa deterioração enquanto objetos. Que, no fundo, estamos neste lugar de transição em movimento ou a envelhecermos juntos. E, assim, o teatro contém a vida, tal como o Desejo Ignorante respira com o desenrolar dos dias. 


 “Landscape theater seeks to reanimate the life-art dialectic that realism had enclosed within it’s illusory four walls. In doing so, it seems to retrace the trajectory followed by the concept of landscape itself, from two-dimensional representation to three-dimensional environment, from a tract of land capable of being seen at a glance to an environment one can explore and inhabit.”
Una Chauduri in “Land/Scape/Theater”
                                                                              FUCHS, Elinon & CHAUDURI, Una; The University of Michigan Press, 2002

Mais informações: http://www.teatromariamatos.pt/pt/prog/danca/20112012/marcialanca