À luz do Desejo Ignorante
Joana Pupo, atriz e investigadora
“Lanscape must be regarded first in terms of living rather than looking.”
John B. Jackson in “Land/Scape/Theater”
FUCHS, Elinon & CHAUDURI, Una; The University of Michigan Press, 2002
A peça da Márcia conta a história de uma revelação. O que a Márcia, o Aniol e o Tiago me propõem são na verdade várias revelações. Da luz e dos corpos, sobretudo. Se estivesse a falar em inglês, podia jogar com o duplo sentido da palavra “Light”. Seria, então, da “luz” - o que a luz do vídeo me revela - e da “leveza” - o que a leveza dos corpos me revela. Daí podia relacionar o “desejo” com a leveza dos corpos e o “ignorante” com esta ideia de luz e de revelação, pois, na verdade, este movimento de revelação transforma-se naturalmente em movimento de indagação.
No início, o silêncio, a escuridão e a leveza quase inerte dos corpos lançam-me numa espécie de lugar transitório. Pouco a pouco percebo que a essa quietude do som, da luz e do movimento subjaz um jogo de peso e de contacto. Aqui acrescento à palavra “Light”, luz-leveza, a palavra continuidade, poderia dizer “presente contínuo”. Quando dou por mim, aderi totalmente. Vivo o desenrolar daquele lugar de transição, através do movimento contínuo dos corpos e da revelação da luz, como um processo inexorável e já contido na quietude. É como aderir ao devir contínuo da natureza, é como aderir naturalmente ao nascer de um novo dia. O meu corpo, mesmo que inerte, ou apoiado numa cadeira, não fica indiferente às mudanças que ocorrem numa espécie de linha subtil de continuidade, onde o fazer e o não fazer se sobrepõem.
Neste processo, fico com espaço para mim, para o meu próprio respirar na cadeira do teatro. Foco esta ideia de “quietude”, do quão importante é a quietude e quão ilusória a imobilidade. No movimento próprio da quietude, a respiração, há ainda um movimento mínimo dos meus órgãos, dentro do corpo, uma adaptação da gravidade ao movimento da respiração. Reparo então que a Márcia e o Aniol, respiram juntos, promovem essa qualidade do respirar juntos, e de sentir juntos o movimento dos órgãos, da gravidade, a reagir à respiração. E de repente a minha sensação salta de um nascer do dia para uma hora da sesta de verão.
Agora sinto a peça como uma “clareira”: será possível um lugar onde simplesmente respiremos juntos, num mundo que me impele constantemente a andar à frente dos meus próprios passos?
Apercebo-me, por detrás da revelação da luz, de uma imagem. Mais uma vez, só ilusoriamente esta imagem é estática, pois contém o movimento do tempo. Será que me apontam para o lugar da revelação fotográfica, como se o processo artístico fosse sempre o processo de uma revelação? E, nesse caso, quando finalmente tenho acesso à coisa em si, ela está velha, aparece diante dos meus olhos como uma coisa do passado. Assim, a minha percepção descola os corpos, em movimento contínuo, e o movimento do vídeo, daquela imagem, objecto, ali aparecido.
Mais uma vez a quietude dos corpos e agora esse objecto, deteriorado pelo tempo. O que me leva a valorizar ainda mais o processo em si, como um presente contínuo de revelação, do que a obra, uma espécie de memória, coisa do passado. No entanto, eu (na cadeira do teatro), a Márcia, o Aniol e o Tiago respiramos com a obra em si, em deterioração, como os nossos próprios corpos.
Penso neste tipo de “clareira”: o lugar da arte, do processo artístico, ou mesmo o teatro, como o lugar de uma utopia possível de respirarmos juntos, de nos apercebermos da nossa continuidade, enquanto sujeitos, e da nossa deterioração enquanto objetos. Que, no fundo, estamos neste lugar de transição em movimento ou a envelhecermos juntos. E, assim, o teatro contém a vida, tal como o Desejo Ignorante respira com o desenrolar dos dias.
“Landscape theater seeks to reanimate the life-art dialectic that realism had enclosed within it’s illusory four walls. In doing so, it seems to retrace the trajectory followed by the concept of landscape itself, from two-dimensional representation to three-dimensional environment, from a tract of land capable of being seen at a glance to an environment one can explore and inhabit.”
Una Chauduri in “Land/Scape/Theater”
FUCHS, Elinon & CHAUDURI, Una; The University of Michigan Press, 2002
Mais informações: http://www.teatromariamatos.pt/pt/prog/danca/20112012/marcialanca